Tocando a noção de sentido ...

Tocando a noção de sentido ...

Sonhadores que Somos

Seres sonhadores e marcados pelo devaneio
Seres de escadas que sobem e descem
Seres que se arriscam na vida sem arreios
Seres libertos que se esquentam e se arrefecem


segunda-feira, 5 de abril de 2010

Contos

A Verdadeira História sobre o Surgimento do Reino da Competência


Hoje, iremos contar uma história que se passou há muito tempo atrás. Em um tempo em que javali não grunhia, político não se corrompia e o Reino da Competência não existia.

Havia em um lindo lugar, um pequeno príncipe, ainda tímido, vaidoso, mas muito bonito. Lá na vila onde morava, repetia o falatório que o principezinho tinha interesse emancipatório. Este, porém ainda não sabia que a ele caberia educar indivíduos para cidadania.

Mas nós ainda não vamos lhe contar, deixemos que ele percorra seu caminho para se preparar.

O tempo passou e o nosso príncipe agora é um guapo rapaz. Então o rei, seu pai, disse:

_ Agora, meu filho, está maduro o suficiente. Construirá o seu reino e contigo seguirão aqueles que forem competentes. É chegado o momento de conheceres o mundo. È tempo de saíres do Castelo e enfrentares a vida.

Tu deverás encontrar a Srtª Autonomia. Uma bela mulher que se esconde em uma curva de seu caminho e quando a encontrares, casa-te com ela. Mas lembra-te, tu só poderás casar-te com ela, a Srtª autonomia, senão a feiticeira o transformará em um sapo tecnicista.

O jovem sentia em deixar a segurança e conforto do reino, mas sabia que era preciso.

E assim, o príncipe andou, andou, subiu montanhas, percorreu vales, cruzou rios, navegou mares.

Certo dia encontrou uma mulher, sozinha, envelhecida e lhe perguntou:

_ Quem és tu?

_ Sou Dona Tecnicista. E tu? Tão belo e jovem, quem és?

_ Sou o príncipe de um reino distante em busca da Autonomia com quem devo casar-me.

_Ah! Que bobagem! Conquistar a Autonomia é muito difícil, o caminho é tortuoso e muitos desistem. Casa-te comigo e não terás mais que pensar pensarei por ti, não terás mais que criar criarei por ti, comigo só terás que repetir. Além disso, eu vivo em um bilicuete próximo daqui. Poderás dar por encerrada sua busca e descansar em paz. Não te atormentes meu jovem rapaz. Não vale a pena! Fique logo por aqui.

_ Sinto muito senhora, não posso, se o fizer, deixarei de existir. Serei um sapo tecnicista. Tenho que encontrá-la!

E assim, o príncipe seguiu seu caminho.

E assim, o príncipe andou, andou, subiu montanhas, percorreu vales, cruzou rios, navegou mares.

Agora surgia em sua frente uma moça realmente linda e sedutora. Por um instante ele imaginou ter encontrado sua amada.

_ quem é você? Perguntou o príncipe.

_ Sou Polivalência.

O príncipe que nunca tinha visto tamanha perfeição, esqueceu-se momentaneamente de sua missão e indagou:

_ Quer casar-se comigo?

_ Não posso, tenho muito trabalho. Devo ampliar ao máximo a formação a formação em vários ofícios relacionados com a profissão que cada indivíduo escolheu. Preciso prepará-los para a evolução tecnológica futura. Além disso, já estou comprometida com o Sr. Requalificação Profissional . Há muito trabalho a ser realizado, estamos permanentemente aprendendo a aprender. Este é nosso lema.

O príncipe estava encantado com as palavras de Polivalencia. Sabia que ela seria fundamental para seu reino. Então exclamou:

_ Que tarefa nobre! Não querem vir comigo? Estou procurando a Srtª autonomia. Juntos construiremos um reino cooperativo e com responsabilidade social. Certamente não conseguiremos sem vocês.

_Claro! Será um prazer participar deste mundo novo. Afirmou de pronto Polivalencia.

Então, andaram, andaram, subiram montanhas, percorreram vales, cruzaram rios, navegaram mares.

De repente, em um desses cantinhos escondidos do mundo, encontraram um grupo de estratégias, rindo, felizes. Jamais haviam visto tanta harmonia.

_ Ola! Quem são vocês, belas criaturas?

_ Olá! Somos da família das Estratégias. Permita-me que nos apresente. Esta é Estratégia de Ensino, de Elaboração, de Organização, de Solução de Problemas e Afetivas.

_ Vocês são tão alegres! Que fazem?

Eu elaboro sínteses com perfeição. Disse a Estratégia de Ensaio.

Eu sei fazer resenhas e analogias. Formular perguntas e respostas é comigo mesmo! Afirmou a Estratégia de Elaboração.

_ E você Estratégia de Organização? Que faz? Indagou Polivalencia , muito interessada.

_ Ah! Eu sou mestra em criar uma rede de conceitos e elaborar diagramas que mostrem a relação entre os fenômenos.Assim fica muito mais fácil apreender os fatos.

_ Puxa! Estou fascinado! Disse o príncipe.

Inesperadamente, surgiu a Estratégia de Compreensão. Sorridente, e tão leve que parecia flutuar. Ela é uma espécie de anjo da guarda que acompanha passo-a-passo todo o processo de aprendizagem.

Mas estavam todos felizes quando subitamente, o príncipe entristeceu-se, e sentado sobre uma pedra resmungou:

_ vocês são tão alegres, não quero contaminá-las com meu desanimo. Mas, estou perdendo as esperanças. Não sei como resolver meu problema.

_ Ora, ora. Mas o que é isso. Conte-nos seu caso. Analisaremos seus erros mais freqüentes e certamente, juntos, encontraremos um caminho mais acertado. Em equipe, tudo torna-se mais fácil. Aprende-se muito com os outros. Disse a Estratégia de Solução de Problemas.

Mais que depressa, sentaram-se ao seu redor as Estratégias Afetivas, motivando-o, erguendo-lhe o queixo e impedindo que ele se curvasse diante de seu problema.

O Príncipe, após conversar com as Estratégias, sentia-se bem melhor. Afinal de contas podia contar com o auxílio das novas amigas para achar a Srtª Autonomia.

E foi assim que eles...

Andaram, andaram...

Opa! Não foi mais preciso subir montanhas, navegar rios e mares. Estava ali. A mais altiva e bela das criaturas já vistas. E como era linda! Sua luz invadia toda equipe. O príncipe mal podia conter-se de tanto encantamento.

_ Como se chama? Indagou o príncipe.

_ Sou Autonomia. E você?

_ Sou o Príncipe de um reino distante. Há muito tempo estou percorrendo um longo caminho em sua procura. Muitas dificuldades surgiram. Não foi fácil. Mas, devo confessar também que muitas alegrias senti, principalmente porque encontrei verdadeiros amigos nesta trajetória. Eu e meus amigos desejamos fundar um reino cooperativo de muita prosperidade.

Srtª Autonomia há muito tempo esperava a chegada de um príncipe que daria a ela possibilidade de vida, pois somente poderia desposá-la aquele que trouxesse consigo uma equipe composta por Polivalência, Requalificação Profissional e Estratégias de Aprendizagem.

E assim, surgiu um reino de amor e esperança que começou com um principezinho em busca de sua autonomia. Um reino que se chama: Reino da Competência.

E você já sabe, quem quiser dele fazer parte deverá:

Andar, andar, subir montanhas, percorrer vales, cruzar rios, navegar mares. Enfim, seguir o caminho em direção à sua autonomia.
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O eterno instante de Anna Ippolitov


Anna é invadida por elucubrações intensas e larga-se sobre uma poltrona em um canto escuro da sala de estar. Sob o auspício do silêncio retumbante ouve-se o ranger tenso de seu maxilar e o barulho irritante de seus dedos a cutucar a superfície de um móvel de cantoneira em cujo centro assenta-se um abajur a meia luz. São duas horas da manhã e o apartamento de Ipanema, antigo imóvel herdado dos pais, agora, mais imóvel que nunca, abriga resignadamente os turbulentos pensamentos e as longas ausências sonoras de Anna, como abrigava sua euforia de outrora, dos tempos de infância e adolescência, do sorriso autêntico que ecoava lampeiro lotando os espaços vazios e contagiando a todos da família. O imóvel e Anna mantinham agora uma relação de intensa co-dependência. Ele (o apartamento) jamais a abandonou. Continua a dar-lhe abrigo. Anna habita seu interior, é parte dele. Mas não mais o sente como um útero protetor e provedor. Estabeleceu uma relação parasitária. Ela suga-lhe o brilho, rouba-lhe a luz, empoe-lhe a sombra, fecha-lhe as cortinas impedindo que o sol o penetre e o livre dos microorganismos que provocam bolor e o destroem lentamente. Anna tornara-se um verme lânguido de seu imóvel.

- Seu Alguém! Seu Alguém! Grita Anna, aos prantos, pois não consegue mais nomear Deus. - Para esse jogo de viver. Pai, onde você está? Por que me esqueceu?

Anna é só lamento, mas não fora sempre assim.

O pai de Anna era um homem longilínio, de feições delicadas e gestos seguros. Um homem sábio, culto, apaixonado pela vida, cujo passatempo predileto, dentre outros como ouvir música e dançar, era tocar, sentir, ler e catalogar livros em sua biblioteca particular. Aliás, que seja dito, uma das peças mais bonitas do apartamento. Sr. Kurkov, como era chamado, era dotado de um admirável senso estético. Havia três paredes cobertas por uma estante de madeira de jacarandá e próximo à porta podia-se avistar um relógio pedestal Carrilhão alemão de 1,90cm de altura que pertencia a família desde a década de 30 e fora cuidadosamente preservado pelos Ippolitov. Sua toada fazia parte da existência de Anna. Soava como música para seus ouvidos. O acervo de livros era enorme e diversificado. Observava-se especial apresso pela literatura russa representada principalmente por Tolstoi em sua obra magnífica: Guerra e Paz, cuja edição em russo fora herdada de seu pai e Dostoievisk. Tendo deste último, a primeira edição traduzida para o português de: Crime e Castigo. Seu pai era filho de imigrantes russos que haviam fugido do regime Stalinista no final dos anos 30. Suas safras agrícolas foram tomadas por Stalin e sua crença em Deus ameaçada pelo novo regime. Partir tornara-se uma necessidade, não uma escolha. Quando chegaram ao Sul do Brasil, em uma aventura que envolveu a China e que foi exaustivamente contada pela família durante esses anos todos, Sr. Kurkov tinha apenas dois anos de idade. Era o filho mais velho dentre quatro irmãos nascidos mais tarde no Brasil.

Anna se alimentava da história contada pelos avós e depois pelo pai, que costumava atribuir ainda mais força e determinação á luta dos imigrantes, como se fosse possível maior admiração por seus feitos. Induzia Anna a imaginar as cenas e ia descrevendo calma e detalhadamente o drama:

- Saímos da Sibéria, passamos pela China clandestinamente, porque o número de vistos para saída legal estava esgotado, esperamos o rio Amur congelar durante o inverno para atravessar sobre ele de trenó. Seguimos para a África, canal de Suez, Estreito de Gibraltar, França e finalmente, desembarcamos no porto do Rio de Janeiro onde fomos obrigados a ficar de quarentena na Ilha das Flores, para evitar possíveis transmissões de doenças. Depois deste período, seguimos em outro navio para Porto Alegre, no Rio Grande do Sul e de carroça fomos até a pequena cidade de Riquezas. O local destinado para nos receber era totalmente hostil, repleto de mato fechado e calor intenso, a terra não estava preparada ao cultivo, não falávamos a Língua Portuguesa, muitas dificuldades havia pela frente. O medo e a esperança eram nossos principais companheiros.

Anna lembrava-se desta história e podia agora sentir o medo assustador de estar só. O medo do nada, do vazio, do não sentido. Não conseguia experimentar a tão falada esperança ao seu lado. Companheira das horas de abandono? Quanta mentira! Só medo, medo... Como podia ser tão covarde, pertencendo a uma família de pessoas destemidas e aguerridas que em nome do que acreditavam eram capazes literalmente de percorrer o mundo em busca de seus ideais. Anna percebeu-se, totalmente, sem ideais, sem idéias, só id.

Arrastou-se até a cozinha preparou uma dose de vodka, velho hábito de final de semana, depois, retornou para onde estava depositado seu corpo minutos antes. Um corpo que parecia extremamente pesado, denso, nevrálgico e dolorido. Um “algo” que precisava carregar até que o “Alguém” lhe permitisse abandoná-lo. Um corpo tão parado quanto o Carrilhão da família que há dez anos marcava 18h. Por um instante, porém, em um breve devaneio, pensou ouvir a flauta doce de Anita, sua mãe.

- Ah que saudade! Suspirou. Anita era uma artista plástica simplesmente deslumbrante e uma musicista talentosa. Pintava sempre a temática do movimento. As texturas, as cores, as matizes, o jogo de luz e sobra que compunham o movimento da vida. Anna herdara seu dom artístico, tornara-se bailarina.

Anita era uma jovem com raro fulgor no olhar e encantamento pela vida. Certo dia, pesquisando sobre a expressão de movimento na dança em diferentes culturas, perpetuou a magia do seu instante de viver. Em um espetáculo de música sobre o folclore russo, interpretado por um cantor nativo de fama mundial, viu Kurkov pela primeira vez. O encontro deles, porém, não se deu conforme a previsível lógica do amor eterno e romântico preconizado pelo Ocidente. Não houve a tradicional “flechada do cupido” que contagia os amantes de tal modo e tanto que faz com o mundo seja e tenha “restos”. Os restos de afetos que alimentam a miséria alheia dos mal amados. Tudo que sobra de um intenso amor à primeira vista. Não. O primeiro contato de Anita e Kurkov foi inteiro ou melhor, suficiente para alimentar os dois naquele hibernal instante, sem sobras, sem restos, sem excedentes. O desejo de reencontrarem-se novamente não surgiu da falta ou da escassez, nem tão pouco do excesso e sim da plenitude da semelhança, da liberdade entre os iguais. Não precisavam se completar, posto que eram inteiros. Possuíam o mesmo entusiasmo, vitalidade e paixão pelo ritmo, pelo movimento, pela sabedoria. Paixão. Um instante que durou uma vida. Anna foi gerada naquele instante, dois anos depois, ou antes, mas naquele instante.

No entanto, no mesmo instante, vinte e cinco anos adiante, o relógio do tempo de Anna parou. Foi quando o Carrilhão marcou 18h pela derradeira vez. Aquele instante não lhe saia do pensamento, sequer havia sido lançado no passado de seu momento, de seu movimento, era presente, presença eterna, domínio, possessão, morte em vida ou vida em morte. Era o dia de sua estréia no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Anita e Kurkov eram só contentamento. Anna sempre fora motivo de orgulho, mas desta vez Kurkov e Anita não podiam conter-se de tanta emoção. Sua única filha, herdeira do amor e do entusiasmo de seus pais, seguia seus passos sem temor.

- Eu poderia morrer agora! Exclamou Kurkov, sentado ao lado de Anna, que dirigia o veículo em velocidade inadequada para pista molhada pela chuva, sem que percebessem em função da euforia plena dos três. Então naquele (este) instante, um carro que vinha do outro lado do cruzamento, com um jovem de apenas 18 anos de idade cruzou o sinal vermelho e colidiu direto no carro de Anna, exatamente na porta ao lado de seu pai. Atrás, estava Anita.

Na poltrona do apartamento em Ipanema, está o “resto” de Anna, da cintura para cima, sem movimento nas pernas, sem movimento na vida, sem alma, sem esperança, sem fé em Ninguém...

No fim, todo grande amor deixa restos, rastros, rostos...


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O Arqueiro que Desafiou o Tempo para Desposar a Transcendência


Dizem, aqui e ali, que um arqueiro robusto anda vagando pelos quatro cantos do mundo, procurando não se sabe o quê. Dizem também, que o arqueiro vencera o grande Mestre Tempo por ocasião de um embate com este arrogante opositor com quem disputava o amor de uma bela mulher ao cair da tarde.

A história é mais ou menos assim...

Em um mundo onde o Tempo era o senhor absoluto de todas as criaturas vivas do planeta, um arqueiro ousou se apaixonar pela esposa do Mestre, a Transcendência. O Tempo ao perceber o feito, ordenou um embate com o arqueiro na boca da noite. Sentia-se traído. Afinal, o arqueiro devia sua vida a ele, pois que viver era o espaço concedido pelo Tempo entre o nascer e o morrer, era a própria possibilidade de existência. Deveras chateado, sabia que o arqueiro merecia uma lição por sua audaciosa coragem. Estava decidido a puni-lo veementemente para que servisse de exemplo para os demais mortais. Isto era um castigo supremo. Ser escorraçado pelo Tempo, mestre e senhor, se constituía em temerosa punição. Naquela época, os homens acreditavam que o Tempo era seu maior aliado.

Não obstante, é importante que se diga que o reinado do Tempo fora um período bastante perverso e extremamente opressor na história da humanidade. Aos homens, não lhes era dado o direito de navegar a mar aberto, conhecer o fabuloso mistério da liberdade, transcender. O Tempo possuía uma legião de soldados chamados de “guardiões da rotina” cuja principal incumbência era distrair os mortais para que não conhecessem a verdade sobre a existência humana.

Todavia, este impetuoso arqueiro desafiou o Mestre e a batalha foi travada. Se o arqueiro vencesse o Tempo no ardiloso embate poderia viver lado a lado com a Transcendência.

A batalha se inicia. O arqueiro lança sua flecha em direção ao Tempo, que se esquiva rapidamente. O tempo tenta sugar a alma do arqueiro, mas menino maroto, se esconde atrás da Angústia, companheira fiel que assiste a tudo atentamente. E assim, prossegue a luta...De repente, o arqueiro percebe que chegou ao fim do mundo, havia saído da sombra maldita da rotina, havia ferido o Tempo. Encontra-se frente a frente com o Momento que nada mais é que o coração pulsante do Tempo. Que espetáculo maravilhoso! O jovem diante do coração do Mestre. Consegue, pela primeira vez, ver a si-mesmo. Sente medo, muito medo. O mundo exterior perde sua importância, torna-se um “isso” desnudado sobre o pano de fundo do nada. E então, após esta experiência face a face com o nada ele emerge forte e criativo e enceta o Momento, matando assim, o Tempo e desposando a Transcendência.

Foi assim que o arqueiro, homem mortal, tornou-se o guardião do nada.